terça-feira, 31 de agosto de 2010

Fim de tarde


Estar ou não estar eis a questão. Adérito contorna o espaço fechado das quatro paredes pintadas de branco, fechando os olhos. Assim como está, deitado no sofá, pode ir onde quer. Sem destino certo, procura a infância perdida pelas esquinas e vielas da cidade velha, outrora tão sua como a casa de família que já não existe. No entanto, é nela que entra mais uma vez, atira os livros da escola para um canto e corre a cumprimentar a mãe, como se não a visse há séculos. Depois das respostas breves que se repetem todos os dias, "Sim..., Não..., Talvez..." vira-se para a lareira para aquecer as mãos e os pés gelados do frio da rua. É bom chegar a casa e encontrar tudo nos seus devidos lugares, a voz melodiosa do conforto, o seu porto de abrigo. Neste momento aconchega-se no sofá, está na hora de mudar de lugar.
Por detrás dos vidros da janela ecoam outros sons, canções estranhas e tristes, tocadas com os mesmos acordes de guitarra que servem da primeira à última do longo reportório. O casal não se cala e o Sr. Adérito roga-lhes a finíssima praga de ali ficarem mudos e quedos até criarem musgo para o presépio. Se contarmos os dias, visto estarmos em Agosto, podemos concluir que este Adérito sabe ser cruel. Terá ele esse direito? A sua própria mãe foi fadista quase profissional, não fosse a teimosia do seu pai e teria feito ela uma brilhante carreira. Agora Adérito imagina, quem mais a fez calar-se?
É fim de tarde, Adérito já não pensa... sonha. Adormeceu.

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