terça-feira, 31 de agosto de 2010

Fim de tarde


Estar ou não estar eis a questão. Adérito contorna o espaço fechado das quatro paredes pintadas de branco, fechando os olhos. Assim como está, deitado no sofá, pode ir onde quer. Sem destino certo, procura a infância perdida pelas esquinas e vielas da cidade velha, outrora tão sua como a casa de família que já não existe. No entanto, é nela que entra mais uma vez, atira os livros da escola para um canto e corre a cumprimentar a mãe, como se não a visse há séculos. Depois das respostas breves que se repetem todos os dias, "Sim..., Não..., Talvez..." vira-se para a lareira para aquecer as mãos e os pés gelados do frio da rua. É bom chegar a casa e encontrar tudo nos seus devidos lugares, a voz melodiosa do conforto, o seu porto de abrigo. Neste momento aconchega-se no sofá, está na hora de mudar de lugar.
Por detrás dos vidros da janela ecoam outros sons, canções estranhas e tristes, tocadas com os mesmos acordes de guitarra que servem da primeira à última do longo reportório. O casal não se cala e o Sr. Adérito roga-lhes a finíssima praga de ali ficarem mudos e quedos até criarem musgo para o presépio. Se contarmos os dias, visto estarmos em Agosto, podemos concluir que este Adérito sabe ser cruel. Terá ele esse direito? A sua própria mãe foi fadista quase profissional, não fosse a teimosia do seu pai e teria feito ela uma brilhante carreira. Agora Adérito imagina, quem mais a fez calar-se?
É fim de tarde, Adérito já não pensa... sonha. Adormeceu.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Como faz o vento...


Já na sua rotina o Sr. Adérito continua a saborear a alheira e a ouvir a melodia do vento a bater nas folhas da palmeira. Não é fácil desembaraçarmo-nos da nossa própria memória, pouco ou nada há a fazer quando as coisas nos tocam os sentidos, de forma tão indelével. Vencido pela teimosia dos seus pensamentos, recorda ainda com mais força tudo o que os sustem, as palavras, um poema... enquanto caminha. Percorre as mesmas ruas, cumprimenta as mesmas pessoas, dá dois dedos de conversa sem grandes demoras, e transporta consigo a felicidade que sentiu naquela noite. Então murmura baixinho...
(...)
"Não nasci para ser a pedra
mármore que cobre um morto
A terra só prende a árvore
e eu vou de porto em porto

Como faz o vento,
assim eu quero viver
como faz o vento,
o vento que anda e é livre
entre vós"
(...)
(Joan Manuel Serrat)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Adérito sai da rotina

(Joseph Alleman)

O Sr. Adérito prova a alheira frita que acabaram de lhe servir. Na sua frente as folhas da palmeira brilham à luz do luar como se estivessem molhadas, o pouco vento da noite fá-las balançar deslocando os brilhos, ora para baixo, ora para cima e para os lados, quando se reflectem uns, apagam-se os outros. Depois de se concentrar neles, por momentos, já não trazem nada de novo. Adérito está feliz! Hoje saiu da rotina, o que é sempre bom, pensa. Mas ao mesmo tempo sente a nostalgia do que deixou para trás. Não sabe definir com exactidão o porquê desses dois sentimentos tão contraditórios, afinal, dali a umas horas vai voltar para casa, agora pode aproveitar o facto de não lá estar.
Ao contrário da palmeira o Sr. Adérito pode mudar de lugar e até escolher qual dos lados do seu corpo é banhado pela luz do luar, vantagem de poder escolher onde pôr as suas raízes, razão mais do que suficiente para se sentir pleno, só não sabe que é o sabor da alheira, aquilo que o faz olhar para trás.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Virgem Suta - Anjo em Descensão @ Salão Brazil (Coimbra) 2009



Eu não sou ninguém
Porque não sei falar
Em embrião me encontro, só
Por ser impar
Por ser de uma cor extravagante
Por ter um andar deselegante
Eu não sou ninguém
Ninguém, deixai-me estar
Minha imagem nesse templo
Não vai entrar
Não quero gente para me velar
Não deixem flores no meu altar
Será que ainda há alguém
A arriscar sua mão
Por milagres?
Alguém a seguir em vão
As miragens?
O inferno é uma invenção
E eu sou um anjo em descensão
Eu não sou ninguém
Porque estou a dormir
Sonhos em torrente aguardam
Explicação
Nem freud, em suta, os ia perceber
Nem coca ou cola o iriam convencer
Eu não sou ninguém
Ninguém, já desisti
O ar que consumo
Tão raro, termina aqui
Eu cisne, torpe, afino a garganta
Já descem grifos sobre a minha manta
Será que ainda há alguém
A arriscar sua mão
Por milagres?
Alguém a seguir em vão
As miragens?
Eu sou anjo em descensão
Três, dois, um... Ai! Colisão...

(Letra: Nuno Figueiredo, Jorge Benvinda
Música: Jorge Benvinda)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Efeitos de luz







De volta às fotografias, já que o trabalho encontra-se parado. Mas não por muito tempo, porque esta inércia está a paralisar-me o cérebro. Pausa para escutar e ler (sobretudo) os outros. Razão mais do que suficiente para continuar a pensar sobre as coisas. Ausência da razão, fronteira da imaginação.